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domingo, 15 de março de 2009

António Assis Esperança

 António Assis Esperança

António Assis Esperança (Faro, 1892 - Lisboa, 1975), foi um escritor e jornalista português.

Trabalhou para as publicações Seara Nova, O Diabo e Vértice e dirigiu o jornal de crítica teatral A Crítica.
Foi membro do Pen Club e um fundadores da Sociedade Contemporânea de Autores, pertencendo à primeira direcção da Sociedade Portuguesa de Escritores (ambas encerradas pelo
Estado Novo).
Algumas obras suas estão traduzidas em romeno.

Obras

  • Vertigem (1919)
  • Viver (1921)
  • O Dilúvio (Prémio da Associação de Profissionais da Imprensa 1932)
  • Gente de Bem
  • Servidão
  • Trinta Dinheiros
  • Pão Incerto
  • Fronteiras (1972)
  • Náufragos (teatro)
  • Noite de Natal (teatro)

Fonte

Marreiros, Glória Maria. Quem Foi Quem? 200 Algarvios do Século XX (2ª ed. 2001). Edições Colibri, Lisboa, 2000.

Obtido na Wikipédia

 

UM HOMEM

“PARA o atravessarmos, acendemos archotes de urze ressequida, porque tudo aqui é simples e primitivo. Iniciamos a marcha Como penduradas na abóbada, ou cabeleira verde das pedras, os fetos e avencas das humidades sombrias; aqui e além a cair :em gotas, pingue-que-pingue, como se toda aquela terra fosse espremida por mãos crispadas, as paredes ressumam água. Faço a primeira centena de passos, e o ponto luminoso, que é a outra entrada do túnel, permanece minúscula, marcando a grande distância a percorrer.

O círculo vermelho do clarão do archote mal chega para nos indicar por onde corre a levada. Guardo silencio porque tudo me é conhecido Surge - o primeiro percalço.

A meio caminho, extingue-se a -luz que nos guiava. O vento, que assobia neste corredor abobadado, fizera que a chama depressa consumisse a urze seca.

O caminho torna-se doloroso, inquietante. Gracejamos uns com os outros, mas a escuridão é completa e separa-nos. Nós e o negrume da noite daquelas paragens; nós e a sensação de que vai abrir-se um abismo a nossos pés, pronto a tragar-nos. A terra encharcada que pisamos torna-se lama fétida; a imaginação põe ali répteis de cabeçorras disformes, repugnantes; as arestas das pedras que tocamos são escamas de monstros; tacteando o murozito da levada, arrepios friorentos percorrem-nos o corpo, como se os nossos dedos tocassem em cadáveres. Apetece-nos gritar, e imediatamente receamos a nossa própria voz; tentamos gracejar, e as palavras soam entarameladas, fúnebres.

Como farol em noite de trevas, a nossa esperança é o orifício branco do fundo do túnel. Apressamos, o mais que podemos, os passos, mas ele nega-se a abrir-se mais, como em caminhada sem fim. Um minuto que passa é ali enternidades.

É então que se apossa de nós o desejo de correr, de fugir, e para bem longe daquele pesadelo. Mas como nos sonhos de quando ansiamos voar e nos sentimos presos, a corrida é impossível naquele terreno escorregadiço, de molhado. As primeiras passadas perco o equilíbrio. É o desconhecido. Apaga-se a sensação de que atravesso um túnel, para me possuir a certeza de habitar um mundo diametralmente oposto àquele em que vivera. A meu lado, tanto podem viver monstros, ou espíritos enfeitiçados, como haver tesouros escondidos.

É depois, quando estamos a poucos metros do fim do túnel, que começamos a encontrar o sabor inédito daquela travessia sem perigos, só a imaginação a torná-la arriscada. A luz, que vem chegando até nós, é júbilo de alma; apetece sorrir e cantar. Desembocamos num terreiro aberto na falda dum monte acima das nuvens, tão próximo do céu !

Píncaros altíssimos. E, como toalha muito alva de altar, o nevoeiro espesso, que ficara todo a meia-encosta, é o chão macio em que, na infância, sonhámos brincar. Mansão de fadas ou residência favorita de sereias, certamente às primeiras horas da manhã as veremos, ali, cabriolando e rindo, para depois se precipitarem no retalho de oceano que muito lá ao fundo, se divisa. Com aquele tapete de arminho a cobrir fundos de abismos, a paisagem é esplendorosamente bela. Sobre terras feitas com a luz branca do luar, construíram-se castelos de rochas que o oceano embala com a canção das suas ondas.

A vereda que seguimos agora é tão estreita que não consente duas pessoas a par. A terra foi, aqui e além, soerguida por mãos dum gigante enlouquecido. São vales profundíssimos, cortados a pique. As próprias cabras da montanha, assustadas à nossa passagem, escolhem os carreiros por onde descer. Há encostas escalvadas, negras, e outras atapetadas com o verde das urzes centenárias. Inquiro do contraste. Meia dúzia de anos antes, os pastores da serra lançaram fogo às matas, e o fogo lavrara por todo o interior da ilha.

(…)

-O incêndio . . .; o incêndio . . .

Esboça gestos, como aterrorizado, e tão infantis como infantis, entarameladas são as suas palavras. Ergue, um pouco, o braço, a mão esboça uma curva leve, e é sempre assim. Significa terror, como depois esse mesmo aceno lhe servirá para significar alegria .

-Foi em 19l09, e eu estava só. Vi o homem e depois o fogo, que saltava de árvore em árvore que nem gato bravo. Três dias durou: três dias. Eu preparei tudo ! preparei tudo. Eu só ! Havia água, e foi só encher os baldes; |

Um risinho seco, sarcástico, contra o fogo, como a castigar-lhe o omnipotencia, e os mesmos gestos: um erguer do braço, e a mão ossuda, enorme, a esboçar uma curva leve. ..

-O fogo vinha daqui, e eu va de lhe deitar água; vinha dalém, e já eu lá estava de plantão. Nunca me apanhou de mãos a abanar. Olhe, meu senhor, que tudo isto eram chamas à roda, e eu vá de deitar-lhes água para cima. Que eu cá, sou rijo !

A voz tem sempre o mesmo tom plangente. Recordação única, por espectáculo único, sorri. Bebe para molhar os lábios.

-Que eu salvei isto. Eu só ! Ao segundo dia, já dum lado estava tudo apagado, veio cá cima um cunhado meu para me dizer que a minha irmã morria com chorar. E queria - levar-me de gancho ! queria que eu abalasse pela levada fora e abandonasse esta casa!

-E foi?

--Qual?! Eu queria lá saber da minha irmã ! Quando isto... quando «a tasca» ardesse, ficava menos um homem no mundo, foi o que respondi ao meu cunhado. E cá fiquei ! eu só! Eu a brincar com o fogo, e o fogo a ralhar comigo. Mas venci eu ! Que eu cá sou rijo. Eu podia lá abalar ! E então isto ? Se eu abalasse, ardia tudo ! Não queriam mais nada, não ?

Fito-o. A narração engrandece-o. Ganhou maior estatura; o dever emprestou-lhe ao rosto um luaceiro de heroicidade. Desaparecem o falar e a timidez dos gestos. Ante mim, está um Homem, e sem desmerecer daqueles que acreditam haver, para eles, uma missão na terra, e não vacilam em sacrifícios, antes os procuram, conscientes, em proceder por forma diferente das maiorias.”

[António Assis Esperança, "Um Homem", in Ilustração, Lisboa 1929, in Cabral do Nascimento, Lugares Selectos de autores portugueses que escreveram sobre o arquipélago da Madeira, Funchal, 1959, pp. 177-180, 184-186]

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